ArtigosDireito Penal

O masoquismo moral da pena de morte

O masoquismo moral da pena de morte

Pena de morte – Cenário 01

08 de agosto de 2030. Dia da minha morte. Sim, fui sentenciado – por um crime que dizem que eu cometi – à pena de morte.

O procedimento iniciou-se às 7h da manhã, conforme determina o protocolo. Eu, Hank Chinaski, fui conduzido para a sala de espera, onde os desgraçados quase-mortos aguardam ansiosamente pelo fim de suas vidas.

A minha morte foi marcada para às 15h de 08 de agosto de 2030. O clima é de festa na penitenciária; os carcereiros estão eufóricos. Igualmente, o clima entre os presos é de excitação e de ironia, à exceção de alguns poucos revoltados com o sistema.

Durante o longo corredor até a “sala de espera”, acompanharam-me meu advogado, o diretor do presídio e alguns agentes penitenciários. Conforme caminhávamos, alguns servidores e presos bradavam, comemoravam a morte porvindoura: “seu monstro, abusador, estuprador, finalmente terá o que merece” – eram os discursos de praxe.

Na sala de espera, era assegurado o direito de ter contato com qualquer pessoa, quem quer que eu desejasse, como familiares e amigos. Outrossim, tinha o direito de ser assistido a todo instante por meu advogado, além de escolher a minha última refeição.


Leia também:


Até a minha condenação, eu sempre gritava pela minha inocência; depois, perdi a esperança no sistema. Desisti de lutar. Os recursos, seja contra a condenação, seja contra a pena de morte, foram ineficazes. Inúteis. A opinião pública estava em meu desfavor.

Fui sentenciado à morte em virtude de um crime ocorrido na residência de C.D.M, mulher trabalhadora de 40 anos há época, e L.M, seu marido, que tinha 38 anos de idade. C.D.M e L.M foram alvos de assalto dentro da própria casa; não bastasse, o assaltante abusou sexualmente da sobrinha do casal que se encontrava lá naquela ocasião, M.T.M, uma garota que tinha 19 anos de idade.

Os crimes foram perpetrados por um único sujeito, que estava com o rosto coberto pela famigerada toca ninja. Ocorre, todavia, que o delinquente, num ato de descuido, deixou-se ferir durante a luta corporal que travou com a garota, M.T.M e, durante o ato sexual, deixou vestígios (sangue) no lençol da cama.

Eu, Hank Chinaski, sempre fui um velho conhecido da polícia, não por crimes sexuais, senão patrimoniais. As vítimas C.D.M, L.M e M.T.M teriam me reconhecido, primeiramente por intermédio de álbum fotográfico da polícia; depois, por reconhecimento pessoal, como se o prévio reconhecimento por fotografia não tivesse contaminado a memória dos reconhecedores no momento da realização do reconhecimento pessoal. Como se os reconhecimentos não tivessem sido sugestionados. Afinal: como chegaram a mim!?

Além do mais, no ato de reconhecimento pessoal, fui apresentado como único suspeito: não havia sequer outro indivíduo ao meu lado para ser reconhecido. Nem os estagiários da Delegacia!

Como sempre ressaltei a minha inocência, concordei em extrair meu sangue para a realização de perícia comparativa com o sangue deixado pelo assaltante/abusador no local dos fatos. A perícia fora inconclusiva. Parece que houve uma tal de quebra da cadeia de custódia no armazenamento do meu sangue, de modo que a perícia apontou que não poderia fazer qualquer conclusão segura, diante da possibilidade de contaminação da prova. Algo que, segundo meu advogado, ocorre com frequência.

O problema é que essa perícia, que nada concluiu, demorou anos para nada esclarecer. Consequentemente, sob a alegação de que a palavra das vítimas têm “especial relevância” e de que elas não viriam a juízo mentir (como se não pudessem se enganar…), fui condenado e sentenciado à morte.

Voltando à sala de espera”, apesar de conformado com a injustiça, ainda acreditava num milagre. Disse ao meu advogado:

– Achei que você me salvaria. Afinal, te paguei com esse monte de dinheiro pra quê? Seu inútil!

Ao que ele me respondeu:

– Havia lhe dito das dificuldades deste processo. Infelizmente, esse é o Poder Judiciário brasileiro.

Neste instante, retruquei:

– Por mim, pode ir embora.

No dia da minha morte, recusei a visita da minha família. Eu tinha esposa, uma linda mulher, e duas belas filhas. Qualquer contato com elas seria pior do que a minha própria morte. Vê-las, sabendo que nunca mais faria parte de suas vidas, é o pior dos castigos.

A sala de espera era uma peça razoavelmente confortável, tinha uma cama, uma televisão, uma mesa no centro com algumas cadeiras e um sofá. O ambiente era limpo e cheiroso. Havia sempre um carcereiro vigiando. Sem trocar qualquer palavra com meu advogado, cuja presença eu havia dispensado, deitei-me na cama e fiquei assistindo televisão, até a hora do almoço.

Às 12h em ponto, o Estado trouxe-me a última refeição. Pedi um bife bem passado e fritas. Cortei o bife, dei duas mastigadas e não consegui comer mais. Sem fome, bebi apenas a Coca Cola, e voltei a me deitar.

Logo em seguida, o diretor da penitenciária adentra na sala e questiona se eu gostaria de alguma assistência espiritual. Havia um padre à minha disposição. A minha resposta não poderia ser diferente:

– Vão à merda. Você e o seu padre.

E assim, sem com ninguém conversar, sofrendo a pior das penitências, qual seja, pensando em minha mulher e em minhas filhas, aguardei o tempo passar. Algum idiota colocou um relógio enorme na sala de espera (que corresponde a um espaço onde se engorda o boi para depois abatê-lo), acredito, para aumentar o sofrimento e a ansiedade do preso-desgraçado-quase-morto. O tempo não passa. E a cada segundo, sofro desgraçadamente em silêncio; minha personalidade se destrói; e o pior: sei que minha família está destruída também.

Às 14h30min, o diretor entra na sala e diz:

– Está na hora. Algemem-no.

Eu não digo nada. Estendo meus braços: sou algemado. Por um longo corredor, sou conduzido ao lado do diretor e mais dois agentes penitenciários. Atrás, vagarosamente, caminha cabisbaixo o advogado.

Conforme vou passando por presos e servidores do Estado, a cadeia incendeia, vibra com o espetáculo da iminente morte. Depois de uma longa caminhada, chegamos, finalmente, à sala-abatedouro.

Uma sala grande, com uma maca centralizada e com largos vidros em todas as paredes. O diretor da Penitenciária me explica que, do outro lado dos vidros, em sala separada, está a minha família. Eu preferia não saber. Observa também que, em outra sala, num outro lado do vidro, estão as vítimas e seus familiares. E que, num último espaço, estão repórteres, alguns políticos, algumas pessoas curiosas que gozam com a tragédia alheia, alguns policiais, o juiz responsável e membros do Ministério Público. O meu advogado dirige-se para este espaço também. Porém, antes de partir, ele diz:

Hank, sinto muito. A justiça brasileira, não raras vezes, é cega. Só posso dizer que sinto muito.

Eu não respondo. Ainda, dentro da sala-abatedouro, estão dois médicos: um responsável por ministrar o veneno; o outro, por atestar a minha morte. Dois idiotas que parece que estudaram medicina para ceifar vidas. Babacas.

São 14h45min, sou colocado sobre a maca, amarrado, de forma que fica impossível qualquer pretensão de resistência ou de qualquer movimento. A maca é inclinada, através de um controle remoto, quando um dos médicos aciona o botão. Fico numa posição central, inclinado, amarrado, humilhado, para que todos possam vibrar com a minha desgraça. Com a morte de uma pessoa. Eu, simplesmente, não conseguia compreender como algumas pessoas podem gozar com este espetáculo.

Novamente: há um maldito relógio na sala! Desgraçados! Tenho certeza: para aumentar o sofrimento de cada sujeito-quase-morto. Se o veneno falha, não tem problema: a possibilidade de uma morte por elevação dos batimentos cardíacos é grande. A cada segundo posso escutar o relógio trabalhar. Cada segundo parece horas. A cada segundo aumenta a angústia, o sofrimento, o desespero, os pensamentos na família que assistem à minha morte. Eu só queria morrer rápido. Podia sentir o sofrimento de minha linda esposa e de minhas filhas, assistindo a este espetáculo.

São 14h55min, quando o carcereiro pergunta:

– Condenado, você gostaria de dizer suas últimas palavras? É um direito seu. Pode dizer qualquer coisa que quiser.

Eu digo:

– Parabéns a todos. Vocês pegaram o cara que vocês precisavam. A justiça está de parabéns.

Ato contínuo, fecho os olhos, engulo o choro, e digo:

– Terminem logo com isso, seus covardes!

O diretor esclarece:

– Ainda não podemos, o relógio tem que marcar 15h. Temos que seguir o protocolo.

Os minutos e os segundos parecem anos. Não passam nunca. E o silêncio é ensurdecedor. Às 15h, o diretor autoriza ao médico responsável aplicar o veneno. Ou melhor: autoriza o abate! O veneno é inserido em meu corpo. Aos poucos, meus batimentos cardíacos diminuem, minha respiração também. Em poucos minutos, estou morto. Um dos “médicos” (lou seriam carrascos?) atesta a minha morte, o procedimento é encerrado e todas as pessoas tornam às suas pacatas e monótonas vidas.

O diretor, o juiz, alguns servidores da penitenciária, alguns policiais e membros da acusação, durante a noite, juntam-se para jantar normalmente. Como se nada tivesse acontecido. Bebem, confraternizam, fazem piadas e dão risadas.

A minha família, todavia, está arruinada. Minha mulher não sabe por onde (re)começar. Minhas filhas, completamente desnorteadas com o golpe duro aplicado pelo Estado, não conseguem enfrentar a dor da perda do pai num espetáculo. Como a morte fora amplamente divulgada, o bullying foi consequência imediata em todos os meios: nas escolas, nas redes sociais, nas relações entre conhecidos.

Mas ninguém se importa. Afinal, “um CPF a menos.”

Pena de morte – Cenário 02

Após a minha morte, um perigoso criminoso conhecido pela alcunha de Robbes é preso pela polícia brasileira e confessa, após truculento método de interrogatório, todos seus crimes, inclusive ser o autor do assalto contra C.D.M e L.M, bem como do estupro em face de M.T.M. Seu material genético é colhido e, após exame comparativo com o material colhido no local dos fatos à época, é confirmado que, deveras, o sangue era seu. A perícia apresentou resultado positivo.

Mataram-me de forma equivocada. Mas, como disseram os juízes, as vítimas não teriam motivos para mentir, afinal, tanto o reconhecimento pessoal, como o fotográfico, seriam procedimentos seguros.

Novamente: Parabéns a todos.


Como todos sabem, no Brasil não se admite a pena de morte. Apesar deste relato ser um caso evidentemente fictício, o procedimento da sanção de morte é mais ou menos assim em outros países: há um protocolo a ser seguido. E existe uma platéia que assiste ao evento! Até mesmo quando realizado por fuzilamento.

Não tenho a pretensão de convencer alguém com este singelo texto. É dado a cada um o direito de pensar à sua maneira. Porém, não é uma reflexão inútil ou impertinente sobre a pena de morte.

Primeiramente: o índice de erro do Poder Judiciário é enorme. Logo: existem elevados riscos de inocentes serem mortos! Nos Estados Unidos, por exemplo, consoante levantamentos realizados, mais de 4% dos sentenciados à morte são inocentes.

Por sinal, em nosso país, recentemente, o STF inocentou um homem preso há mais de dez anos por estupro, com base na existência de prova pericial (exame de de DNA).

Em segundo lugar, questiono: quem poderia ser favorável a um espetáculo destes? Quão sádica uma pessoa precisa ser para compactuar com a cena de um semelhante ser morto publicamente, pelo próprio Estado?

No mínimo, a pena de morte corresponde a um masoquismo moral:

para reprimir minhas angústias, meu sofrimento e o meu sentimento de injustiça, preciso ver o outro morrer! Sofra, desgraçado!

Em terceiro lugar: como pode ser ético aos médicos retirarem vidas de pessoas com plena saúde, sem qualquer fim terapêutico?

Sem embargo dos tempos difíceis, não podemos regredir à barbárie. Como já dizia Victor Hugo:

a morte só pertence a Deus.


Um baita 2019 a todos!


REFERÊNCIAS

Mais de 4% dos condenados à morte nos EUA são inocentes, indica estudo. Disponível aqui.

Homem preso há 10 anos é inocentado de estupro com exame de DNA pelo STF. Disponível aqui.


Quer estar por dentro de todos os conteúdos do Canal Ciências Criminais?

Siga-nos no Facebook e no Instagram.

Disponibilizamos conteúdos diários para atualizar estudantes, juristas e atores judiciários.

Guilherme Kuhn

Advogado criminalista. Pesquisador.

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo