Noticias

De Moro a Moraes: R.I.P à imparcialidade do Juiz no Brasil

A tradição jurídica do estado liberal de direito concebia atividade de julgar como um ato totalmente desvinculado da criatividade, restringindo-se a uma estrita aplicação silogística da lei. O juiz era apenas, na expressão de Montesquieu, a “Boca da Lei”, limitando-se a ser o “porta-voz” daquilo que já estava previamente previsto no plano legislativo. Exercia, dessa forma, um poder neutro, completamente autômato, sem qualquer influência externa ou interna, pois a Instituição (Poder Judiciário) fazia a justiça.

Contudo, essa visão da aplicação do direito como um poder neutro, puramente racional, sendo o julgador livre de qualquer influência externa ou emocional, é algo absolutamente superado. A frase clássica de Descartes “penso, logo existo” ilustra exatamente o oposto do que os estudos acerca da mente humana hoje revelam. Sentimentos e emoções são uma percepção direta de nosso ser e constituem um elo entre o corpo e a consciência. O juiz deve saber que, ao julgar, será influenciado por seus sentimentos, emoções, por sua pré-compreensão de mundo e, até mesmo, pelo seu inconsciente.

Mesmo assim, precisamos ter pessoas que ocupem essa difícil e importante função na sociedade e que sejam, de preferência, vocacionadas para tanto. Sem o Poder Judiciário, uma divisão tripartida dos poderes e um sistema de freios e contrapesos que limite a atuação dos poderes da república não há estrutura democrática. Dessa forma, uma das grandes preocupações que devemos ter, sobretudo no processo penal pois trata da liberdade dos indivíduos, é a preservação da imparcialidade do juiz, segundo regras de caráter objetivo.

Isso significa que é preciso haver uma delimitação precisa das funções de acusar, julgar e defender no processo penal, sendo vedado ao juiz qualquer atuação de ofício. Significa dizer que o juiz deve ser um sujeito inerte no processo, que deve aguardar a atividade processual e probatória das partes, não podendo assumir uma posição de protagonismo. O processo penal não tem finalidade de ser utilizado como instrumento de perseguição política, mas sim é um conjunto de regras que se propõe a assegurar os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos naquele momento em que eles são mais tensionados pelo poder estatal.

A Constituição Federal consagra a imparcialidade do juiz ao vedar o tribunal de exceção (artigo 5º, XXXVII) e assegurar o juiz natural (artigo 5º, LII), ambas cláusulas pétreas que não podem ser sujeitas a emendas por parlamentares. O artigo 95, caput da Constituição assegura a independência da magistratura, a partir das regras da vitaliciedade, inamovibilidade, bem como veda qualquer tipo de atividade político-partidária.

O Estatuto da Magistratura (Lei Complementar 35/1979), por sua vez, determina que o juiz deverá exercer sua função com independência e serenidade, tratar com urbanidade as partes, ter conduta na vida pública e particular irrepreensível, mas, principalmente, que não poderá manifestar, por qualquer meio de comunicação, a sua opinião sobre processo pendente de julgamento (artigo 36, inciso III).

E há que se falar também nos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que garantem à toda e qualquer pessoa o direito de ser processado por um tribunal competente, independente e imparcial. Sobre essas regras e princípios deveria se construir um processo penal que se pretende democrático, partindo de um juiz verdadeiramente imparcial e que permita às pessoas o mais amplo direito de defesa. Entretanto, é lamentável o cenário que vivemos em nosso país nos últimos anos.

A crítica aqui se inicia pelos muitos atos processuais realizados pelo então magistrado Sérgio Moro, no curso da Operação Lava-Jato, que acabaram sendo acertadamente anulados pela Suprema Corte em razão da quebra da imparcialidade. O vazamento das conversas em chats privados do então juiz com os membros do Ministério Público Federal pelo The Intercept demonstraram que o juiz tomou partido ao aconselhar a forma como a acusação deveria proceder, principalmente em relação aos processos que atingiram o então ex-Presidente Lula.

Além disso, após a condenação de Lula, Moro foi nomeado Ministro da Justiça do principal opositor político do réu que veio por ele a ser condenado. Isso sem contar as incontáveis entrevistas dadas pelo então juiz, na imprensa, dando conta da condução parcial que foi dada na Operação Lava Jato. Ante a tudo isso, inevitável e acertado o reconhecimento da quebra de imparcialidade pelo Supremo Tribunal Federal, decisão que acarretou a nulidade dos processos movidos contra Lula, possibilitando que o mesmo voltasse ao cenário politico como ficha limpa e se lançasse à Presidência da República.

De outro lado, temos o Ministro Alexandre de Moraes que, de ofício e contra a posição do Procurador Geral da República (titular da ação penal), instaurou o famigerado inquérito da “Fake News”. O início deste expediente investigatório possibilitou a decretação de incontáveis medidas cautelares, tais como buscas e apreensões, bloqueios de contas, restrições à liberdade de expressão contra jornalistas e pessoas ligadas ao ex-Presidente Jair Bolsonaro, entre outras medidas que tanto tem sido questionadas.

Esses ativismos judiciais, feitos ao arrepio da imparcialidade, acabaram por insuflar um antagonismo político que já estava sendo vivenciado Brasil. O Poder Judiciário (constituído com a finalidade de solucionar os conflitos sociais), literalmente, colocou “lenha na fogueira” do conturbado debate político, o que despertou muita revolta naqueles que foram os derrotados no último pleito eleitoral.

E, ao que tudo indica, a situação vai continuar. A imparcialidade virou princípio jurídico morto, inócuo. Após a prisão em flagrante das aproximadamente 1500 pessoas envolvidas nos atos antidemocráticos do último domingo (dia 8), o juiz veio à público dar declarações, ao arrepio da lei orgânica da magistratura e evidenciando a sua parcialidade no inquérito policial. Alexandre de Moraes externou seu claro intuito punitivista e revanchista contra as pessoas que estão presas. Declarou na imprensa – sem observar qualquer devido processo legal, contraditório ou ampla defesa – que todos os envolvidos são “terroristas” e “golpistas”, disse que “essas pessoas não são civilizadas”. Chegou ao ponto de dizer, de forma irônica, que “não achem, esses terroristas, que até domingo faziam baderna e crimes, e agora reclamam porque estão presos, querendo que a prisão seja uma colônia de férias. Não achem que as instituições vão fraquejar”. Iniciou-se uma verdadeira caça às bruxas!

E a esquizofrenia jurídica no Brasil é tamanha que àqueles que elogiavam a postura e as decisões do Supremo Tribunal Federal quando da anulação dos processos movidos contra Lula, pois é sobre a imparcialidade do juiz que o processo penal deve ser estruturado no Estado Democrático de Direito, hoje aplaudem o ativismo e as declarações de Alexandre de Moraes quando se reportam à perseguição e punição dos manifestantes e apoiadores do ex-Presidente Jair Bolsonaro, não apenas no tocante aos atos antidemocráticos de domingo (dia 08), mas também à todas as medidas cautelares oriundas do ilegal inquérito das “Fake News”.

Em contrapartida, os mesmos que diziam ser um absurdo a decisão da Suprema Corte em libertar Lula, tratando a quebra de imparcialidade de Moro na condução dos processos da Lava Jato uma filigrana constitucional, hoje clamam por seus direitos e garantias constitucionais, postulam o contraditório, ampla defesa e o devido processo legal, bem como atribuem à Alexandre de Moraes uma postura ativa e política incompatível (e assim entendemos que seja) com a de um magistrado, pois o mesmo está sendo parcial.

O processo penal não é instrumento de perseguição política, como estamos testemunhando. De Moro à Moraes. Não é uma questão política, mas sim jurídica e de assegurar que os princípios e garantias fundamentais que nos tornam um Estado Democrático de Direito, conquistadas à duras penas, não sejam abandonadas pelo Poder que deveria ser seu garantidor.

Um minuto de silêncio…. R.I.P à imparcialidade judicial!

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo