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Os tribunais contra a inocência do réu

Os tribunais contra a inocência do réu

Processo penal e direitos fundamentais conjuntamente formam – ou deveriam formar –, respectivamente, o instrumento e o conteúdo de proteção da liberdade do inocente, e/ou também, noutra perspectiva, da condenação (e também da pena) justa do culpado (stricto sensu).

Todavia, o estado de coisas que se realiza no Brasil, cujo entendimento solipsista do julgador, incontáveis vezes, vale mais do que as disposições constitucionais sobre direitos e garantias fundamentais, nos obriga a conclamar a consecução do óbvio, isto é, o mero respeito ao que está disposto indubitavelmente na Constituição. Será que é pedir muito?

É fora de dúvida, porém nunca é demais relembrar e reafirmar, que

a interpretação de uma norma constitucional levará em conta todo o sistema, tal como positivado, dando-se ênfase, porém, para os princípios que foram valorizados pelo constituinte.

Aduz com inegável acerto Dirley da Cunha Jr. que

todas as normas jurídicas caracterizam-se por serem imperativas. Todavia, na hipótese particular das normas constitucionais, a imperatividade assume uma feição peculiar, qual seja, a da sua supremacia em face às demais normas do sistema jurídico.

É chegado o momento – aliás, já deveria ser uma prática uniforme – de descer do plano das palavras poéticas e eloquentes que tratam da supremacia da constituição e passar para o plano da concretização real e efetiva dessa proeminência das normas constitucionais.

O princípio da presunção de inocência, também conhecido como princípio da não culpabilidade ou estado de inocência, retira sua base normativa da Constituição Federal, em seu Art. 5º, LVII: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Desse enunciado normativo emana o dever de tratamento, endereçado ao Poder Judiciário, de considerar o cidadão como inocente. Com efeito, esse dever de tratamento – que também é exigido no âmbito administrativo – terá sua importância realçada tanto mais invasivo e lesivo aos direitos fundamentais do investigado ou processado seja o procedimento adotado, como sói ocorrer com o criminal, porquanto, há de se adequar o desenvolvimento de tal procedimento com o necessário tratamento de inocente ao indivíduo.

Eis a imperiosa e árdua missão do referido princípio: possibilitar e garantir ao acusado um tratamento de inocente, ainda que pesem sobre ele indícios de autoria de fato delituoso.

Outros consectários do aludido princípio são o direito ao silêncio, o in dubio pro reu e o direito a não-autoincriminação (nemo tenetur se detegere).

Porém, o consectário da presunção de inocência que mais nos interessa, para o objetivo aqui almejado, é aquele que atribui o ônus da prova, inteiramente, à acusação.

A esse respeito, preleciona Nucci que o princípio da presunção de inocência

tem por objetivo garantir, primordialmente, que o ônus da prova cabe à acusação e não à defesa.

Aury Lopes Jr, com a precisão que lhe é característica, aduz que a presunção de inocência é

o princípio reitor do processo penal e, em última análise, podemos verificar a qualidade de um sistema processual através do seu nível de observância (eficácia).

Em suma, o princípio da presunção de inocência é uma conquista do Estado Democrático de Direito.

Entretanto, malgrado a clareza cintilante desses ensinamentos doutrinários, os Tribunais pátrios, inclusive o STJ, vêm decidindo pela inversão do ônus da prova, ao preço de imperdoável heresia à Constituição, assim como ocorre quando quem professa a fé cristã dirige suas ações sem observância dos preceitos bíblicos.

É preciso destacar, com pesar, que a inversão do ônus da prova, atribuindo-lhe, inconstitucionalmente, ao réu, já se converteu numa prática jurisprudencial sedimentada, e vem sendo adotada por praticamente todos os Tribunais de Justiça dos Estados e também já ecoa no Superior Tribunal de Justiça, de modo que estamos a presenciar a consagração de verdadeira presunção de culpabilidade – o pecado venceu a fé?

Os Tribunais de Justiça dos Estados vêm aplicando a inversão do ônus da prova na apuração processual de delitos diversos, notadamente os crimes de furto e receptação

Vejamos julgados nesse sentido – inclusive, no primeiro se tentou, por meio de grosseira retórica, dizer que a inversão não é inversão –, nos quais se aduziu que:

Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, no crime de receptação, se o bem houver sido apreendido em poder do acusado, cabe à defesa apresentar prova acerca da origem lícita do bem ou de sua conduta culposa, nos termos do disposto no art. 156 do CPP, sem que se possa falar em inversão do ônus da prova.” (TJ-AL, Apelação: 00032309320108020058, Data de Publicação: 06/05/2020)

A apreensão do bem subtraído da vítima na posse da ré inverte o ônus da prova, devendo este apresentar uma justificativa convincente pra tanto.” (TJ-MG, Apelação: 10056140273402001, Data de Publicação: 21/02/2020)

Como exemplo da adoção dessa malfadada tese pelo Superior Tribunal de Justiça, podemos apontar julgado sobre crime de receptação, onde a Corte afirmou que:

Nesse contexto, era ônus da defesa comprovar a origem lícita dos referidos bens, o que efetivamente não ocorreu.” (Julgado disponível aqui)

A par dessa reflexão, já é possível perceber o quão perniciosas para os direitos fundamentais e para o adequado funcionamento da nossa já tão combalida Democracia podem ser decisões como essas, que, em verdade, negam mesmo vigência às disposições constitucionais sobre direitos e garantias fundamentais.

Lamentavelmente, no Brasil, em se tratando de concretização de direitos e garantias fundamentais, ainda se percebe uma reacionária recalcitrância de Juízes e de Tribunais em assimilar os ares democráticos trazidos por nossa Constituição de 1988. O período nefasto de autoritarismo e arbítrio conduzido pelo regime militar e os mais de 30 anos de vigência da atual Constituição parece não foram suficientes para pôr fim ao sentimento e a vontade de inquisição que, ainda hoje, permeiam a consciência e as ações de nossos Juízes e Tribunais.

A vontade de constituição, proclamada por Hesse, ainda, aqui, não logrou êxito como deveria. E, menos ainda, justamente no ramo do direito em que essa vontade deveria mais vigorosamente se manifestar, na medida em que é a liberdade do cidadão que se encontra sob ameaça, justa ou injustamente, de cerceamento.

A prova disso são essas decisões que negam direitos básicos, defendidos há séculos, dos investigados e processados no âmbito criminal. Como ocorre, inquestionavelmente, ao negar ao réu o tratamento de inocente, invertendo-se o ônus da prova, não obstante esse tratamento seja imposto por norma constitucional fundamental, cláusula pétrea, que, portanto, não pode sequer ser suprimida pelo Poder Legislativo, que a estabeleceu e tem a incumbência de modificar as disposições constitucionais.

O Judiciário, como se vê, ilegitimamente e por via obliqua, avoca para si o direito de negar-lhe vigência. Uma espécie de revogação velada, subjacente à retórica presente nas decisões.

Decisões como estas vilipendiam não só a liberdade individual, mas a própria Democracia.

Ora, de acordo com Noberto Bobbio, a Democracia só pode subsistir dentro das regras do jogo, vale dizer, impõe-se, como condição da sua existência e realização, o respeito inarredável às Instituições a aos procedimentos legais de formação da vontade política (inegavelmente, a decisão judicial traduz expressão da vontade política do Estado e, como tal, deve respeito irrestrito às disposições constitucionais).

Tal concepção de Democracia tem o mérito inegável de evidenciar que só pode haver sistema democrático mediante inarredável respeito ao que estabelecido pela Lei, sobretudo se estamos diante de preceito legal que assegura um direito fundamental.

Poucas ações são mais perigosas à Democracia do que a ofensa, por quem a devia por missão proteger, à liberdade.

Impende perguntar: devemos nos resignar com essa proscrição da presunção de inocência perpetrada por nossos Tribunais? Como combater, dentro dos limites democráticos, odiosa prática judicial?

Infelizmente, como visto, a resposta a esses questionamentos não é simples. Pois que pedir respeito à autoridade da Constituição já não é o bastante.


REFERÊNCIAS

TEMER. Michel, Elementos de direito constitucional. 24. ed., São Paulo: Malheiros, 2017.

CUNHA JR. Dirley da, Curso de direito constitucional. 8. ed., Salvador: Juspdvin, 2014.

GIACOMOLLI. Nereu José, Devido processo penal. 3. ed., São Paulo: Atlas, 2016.

GRAU. Eros Roberto, Por que tenho medo dos juízes. 9. ed., São Paulo: Malheiros, 2018.

NUCCI. Guilherme de Souza, Manual de Processo Penal e Execução Penal. 13. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2016.

LOPES JR. Aury, Direito Processual Penal. Ed. 16, São Paulo: Saraiva, 2019.


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