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É válido realizar a audiência de custódia por videoconferência?


Por Danyelle da Silva Galvão


Como tratamos na última semana de dezembro (leia aqui), encontra-se em tramitação no Congresso Nacional o PLS n. 554/2011 que visa a regulamentação – em lei federal – da audiência de custódia. Uma das emendas de plenário apresentadas pelo Senador Randolfe Rodrigues (número 13) propõe a possibilidade de uso da videoconferência para a realização do ato, com o que não se pode concordar.

Sabe-se que o Congresso Nacional já discutiu, em mais de uma oportunidade, sobre o uso da videoconferência para os acusados presos. Em uma primeira vez, quando tratou-se sobre a regulamentação do RDD (regime disciplinar diferenciado) no PL n. 5073/2011, invocou-se o custo das escoltas policiais e o risco de fuga para sustentar a necessidade do uso da tecnologia, mas a proposta foi rejeitada no plenário da Câmara dos Deputados.

Em uma segunda oportunidade, após decisão do Supremo Tribunal Federal anulando interrogatório à distância por ausência de lei federal que regulamentasse a prática (HC 88914), o Congresso Nacional novamente discutiu a questão no PLS n. 679/2007, tendo como justificativas o custo das escoltas policiais, a segurança dos envolvidos/risco de fuga ou resgate, e a duração razoável do processo. O projeto foi aprovado e entrou em vigor a Lei n. 11.900/2009 que deu nova redação ao §2o do art. 185 do Código de Processo Penal autorizando– em algumas hipóteses taxativas – o uso da videoconferência.

Não se pode negar que o avanço tecnológico possibilitou a modernização do Poder Judiciário e a aceleração das comunicações entre a polícia judiciária e a Justiça. Mas, ao tratarmos da audiência de custódia, é indispensável analisar se o uso da videoconferência atende o objetivo do ato.

O art. 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos, aplicável ao momento da prisão, estabelece que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”. O mesmo é disposto no art. 9.3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos: qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade”.

A redação proposta pelo PLS n. 554/2011 para o §5o do art. 306 do Código de Processo Penal é para que haja “condução à presença o juiz”. O objetivo principal da audiência de custódia é justamente este: garantir que o preso seja apresentado em juízo para ser ouvido. A doutrina já se manifestou que o termo “conduzir” significa transportar de um local a outro, o que não ocorre quando há o uso da videoconferência (SILVA, 2009, p. 381).

E mais. Atualmente o Código de Processo Penal autoriza restritamente o uso da videonconferência para o interrogatório de acusados presos, desde que haja decisão judicial fundamentada e sejam preenchidos os requisitos autorizadores previstos nos incisos do art. 185, §2o, que analisaremos a seguir.

Como regra geral, portanto, o contato entre o acusado e seu julgador deve ser pessoal, presencial (presença física do acusado perante a autoridade), sem o uso de recursos tecnológicos.

Sabe-se que qualquer situação que envolva cidadãos presos ou estabelecimento prisionais exige uma especial atenção quanto à segurança, seja para a manutenção da prisão ou para eventuais deslocamentos.

No entanto, a segurança pública e o custo das escoltas são questões inerentes à atuação estatal para a persecução penal e representam dificuldades normais e consequências diretas do encarceramento. Como já sustentado anteriormente (GALVÃO, 2015, p. 164),  “entender que o uso da videoconferência está autorizado somente porque o deslocamento gera risco à segurança pública é admitir a tecnologia para todos os casos em que haja acusado preso, afinal, trata-se de questão sempre atrelada à existência de prisão”.

Desta maneira, considerando que a regra é o deslocamento do acusado à sede do juízo para a realização de todos os atos, entende-se incabível o uso da tecnologia, com fulcro nos incisos I e II, para a audiência de custódia.

É facil notar que a hipótese prevista no art. 185, §2o, inciso III, não se aplica às audiências de custódia, visto que o ato é unicamente para a realização da sua oitiva quanto à prisão, sem presença de testemunhas ou vítimas.

Resta, enfim, a última hipótese de uso do recurso tecnológico prevista atualmente na legislação (inciso IV) relativa à gravíssima questão de ordem pública.

A expressão “ordem pública” vem, há muito, sendo discutida devido a sua aplicação como fundamento para a decretação da prisão preventiva. Trata-se de conceito aberto e, segundo posicionamento da doutrina, um “cheque em branco” ao magistrado quando se refere ao uso do recurso tecnológico (RANGEL, 2010, p. 578). Inclusive, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes (2011, p. 85) defendem que “com a indeterminação do inciso IV, há o perigo de não se respeitar à excepcionalidade afirmada pelo legislador”.

Para que haja uma melhor aplicação da expressão, Maurício Zanoide de Moraes (2010, p. 390-393) sustenta a necessidade de observância do ato criminoso e não do seu agente, para que se evite a decretação de prisão baseada em emoções ou em preconceitos. Em síntese, a gravíssima questão de ordem pública não pode ser atribuída à pessoa do acusado, mas ao fato que lhe foi imputado.

Evidente que não pode o Delegado de Polícia, que não detém atribuição para julgamento dos fatos em questão, em momento anterior a qualquer análise judicial sobre o caso e a prisão, presumir que se trata desta hipótese.

No entanto, tal solução é inadmissível para o uso da tecnologia na audiência de custódia, já que o ato tem como objetivo primordial a verificação da legalidade da prisão em flagrante e a análise das medidas previstas no art. 310 do Código de Processo Penal.

Assim, somente durante a audiência de custódia, quando o acusado já está na presença do magistrado, é que será analisada – e eventualmente constatada – a necessidade de prisão para garantia da ordem pública. Além disto, deve-se dar à expressão do inciso IV significado ainda mais restrito ao que se concebe para a ocorrência da prisão, visto que a Lei no 11.900/2009 incluiu o adjetivo “gravíssima” a frente da expressão.

Ademais, o contato virtual, por meio de uma tela de computador ou de televisão, não é suficiente ou adequado porque impossibilita a percepção do caso e do acusado pelo julgador. Dyrceu Aguiar Cintra Jr. (2005, p. 99) afirma que a videoconferência “impossibilita perfeita percepção da personalidade do réu, quer para fins de concessão de liberdade provisória, quer para a atividade futura de individualização da pena, se for o caso de condenação”, enquanto Aury Lopes Jr (2005, p. 82) afirma que a distância contribui para a desumanização do processo penal, já que o recurso tecnológico aniquila ou mata “o caráter antropológico do próprio ritual judiciário, assegurando que o juiz sequer olhe para o réu, sequer sinta o cheiro daquele que ele vai julgar”.

É certo que contato entre o preso e seu defensor e entre o preso e o magistrado é diminuído quando o recurso tecnológico é utilizado para qualquer ato processual. Isto porque, frise-se, há diferença entre presença física e a virtual. Caso fossem idênticas, não haveria razão para o legislador (Lei n. 11.900/2009), a doutrina e a jurisprudência reafirmarem a excepcionalidade do interrogatório judicial à distância ou para se preocuparem com a bilateralidade e qualidade da transmissão dos sons e imagens.

Tampouco haveria preocupação ou a necessidade em prever a presença de dois defensores, com o estabelecimento de sistema de comunicação inédito no país para possibilitar o aconselhamento profissional.

É certo que as novas tecnologias afastam necessidade de presença física, e que há benefícios, mas também é certo que não substituirão a forma tradicional de realização das audiências. Como afirma Ana Montesinos García (2009,  p. 13), a videoconferência facilita a administração da Justiça e garantirá um processo mais cômodo e eficaz, mas não resolverá todos os problemas, sendo necessária a harmonização das formas tradicionais do processo com aqueles mecanismos tecnológicos, sempre respeitando as garantias fundamentais do acusado.

Assim, entende-se que inexiste justificativa para a adoção do uso da videoconferência na audiência de custódia, já que o objetivo da “condução à presença do juiz” é realmente verificar a necessidade da continuidade da medida ou eventualmente conceder liberdade provisória, além de analisar se as garantias constitucionais estão sendo obedecidas.


REFERÊNCIAS

CINTRA JR., Dyrceu Aguiar. Interrogatório por videoconferência e devido processo legal. Revista de Direito e Política. Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP, v. 5, abril/junho 2005.

GALVÃO, Danyelle da Silva. Interrogatório por videoconferência. São Paulo: LiberArs, 2015.

GARCÍA MONTESINOS, Ana. La videoconferencia como instrumento probatorio en el proceso penal. Madrid: Marcial Pons, 2009.

GRINOVER, Ada Pellegrini; MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio; SCARANCE FERNANDES, Antonio. As nulidades no processo penal. 12a edição, São Paulo: RT, 2011.

LOPES JUNIOR, Aury. O interrogatório online no processo penal: entre a assepsia judiciária e o sexo virtual. Revista de Estudos Criminais, v. 5, n. 19, julho/setembro 2005.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 18. ed., 2010.

SILVA, Ivan Luiz da. Interrogatório criminal on-line: uma proposta conciliatória entre a modernidade tecnológica e as garantias processuais do réu. Revista dos Tribunais, ano 98, v. 880, fevereiro 2009.

ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

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Danyelle da Silva Galvão

Advogada. Doutoranda em Direito Processual. Mestre em Direito Processual. Professora de Direito.

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