ArtigosInvestigação Criminal

Polícia Judiciária e medidas restritivas de liberdades fundamentais


Por Eujecio Coutrim Lima Filho


A investigação criminal, procedimento administrativo capaz de restringir direitos fundamentais como o patrimônio, a intimidade e a liberdade, deve ser reinterpretada e reafirmada, em todos os aspectos, sob a atual ótica constitucional. Não se discute a imprescindibilidade da atuação do Estado-investigação na persecução penal, viabilizando a punição do agente criminoso e o favorecimento da manutenção da paz social. Contudo, é imprescindível que a investigação preliminar seja contornada de garantias constitucionais, fortalecendo o seu caráter democrático e sua inegável força jurídica na elucidação de fatos criminosos, proporcionando ao Estado-acusação o desenvolvimento de seu mister.

De tal modo, verifica-se a importância em corroborar as funções de cada órgão policial, destacando o papel daquele que possui prerrogativa constitucional no que diz respeito à investigação criminal, não obstante o importante ofício de todas as forças policiais, dentro de suas atribuições, na segurança pública. Apesar do tema se mostrar incontroverso (e, de certa forma, até “batido”), pela clareza do texto constitucional e do próprio STF que já se manifestou  sobre o assunto (ADI´s 1570/DF e 3614/PR), eventualmente surgem algumas espécies de atos investigatórios e “representações judiciais” e, mais eventualmente ainda, algumas decisões que nos chamam ao debate.

É clássica a divisão doutrinária entre a polícia administrativa e a polícia judiciária. A primeira possui caráter ostensivo e se propõe a prevenção do crime. Já a segunda, auxiliar do Poder Judiciário, possui caráter repressivo e atua na elucidação dos fatos criminosos. O sistema de segurança pública e as respectivas atribuições dos órgãos envolvidos foram claramente delineados pelo constituinte de 1988. Portanto, o funcionamento harmônico desse sistema é pressuposto à manutenção do Estado Democrático e, especialmente, à efetivação de direitos fundamentais do cidadão que muitas vezes, durante a persecução penal, colidirão com outros direitos de igual importância e poderão ser afastados no caso concreto. Em síntese, a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública foi dirigida à Polícia Militar (art.144, §5º, CRFB); o patrulhamento ostensivo das rodovias federais coube à Polícia Rodoviária Federal (art.144, §2º, CRFB); à Polícia Civil e à Polícia Federal competiu a investigação de fatos criminosos e as funções de polícia judiciária (art.144, §§ 1º e 4º, CRFB).

Nos termos do art. 8° do Código de Processo Penal Militar, além da função de polícia administrativa constitucionalmente prevista, a Polícia Militar possui atribuição de Polícia Judiciária Militar no que diz respeito aos crimes militares praticados por policiais militares.

Em relação à investigação de crime não militar verifica-se que o constituinte, dentro da mesma estrutura policial dirigida pelo Delegado de Polícia, distinguiu as funções da polícia judiciária e da polícia investigativa. Assim, a colheita de elementos informativos de materialidade e autoria delitiva foi dirigida à polícia investigativa enquanto à polícia judiciária coube a função de órgão auxiliar do Poder Judiciário, competindo os atos de representações e de apoio ao Judiciário como, por exemplo, o cumprimento de mandado de busca e apreensão, prisão e condução coercitiva de testemunhas. Contudo, é comum o uso da expressão polícia judiciária se referindo às duas funções (LIMA, 2015).

No decorrer da investigação criminal, o Delegado de Polícia, como chefe da Polícia Judiciária, dispõe de importantes meios à elucidação da autoria e materialidade delitiva. O art. 311 do CPP e o art. 2º da Lei n. 7.960/89 conferem à Autoridade Policial a atribuição para representar, respectivamente, pelas prisões preventiva e temporária do investigado. Igualmente, podem ser citados como exemplos, dentre outras medidas investigativas, a representação pelo mandado de busca e apreensão (art. 240 e seguintes do CPP) e a interceptação telefônica (Lei n. 9.296/1996). Em todas essas hipóteses se verifica um sopesamento entre direitos individuais do investigado e outros direitos igualmente relevantes.

O simples fato de ser investigado já configura fator constrangedor. Ademais, a eficiência da investigação criminal e a garantia de direitos basilares a toda sociedade inevitavelmente entrarão em conflito com outros direitos também essenciais ao indivíduo. Tais restrições de direitos fundamentais devem ocorrer no exato limite legal e constitucional, sob pena de se ter um ato arbitrário e ilegal, colocando em risco não só os direitos da pessoa humana como também todo trabalho sério de investigação, pois todas as provas decorrentes dos elementos produzidos com violação de direito fundamental também serão consideradas nulas.

A investigação criminal por agente alheio à autoridade policial viola todo sistema legal e constitucional dedicado ao Estado-investigação. Nesta direção, O art. 2º, §1º, da Lei n. 12.830/2013, afirmou que “ao Delegado de Polícia, na qualidade de Autoridade Policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de Inquérito Policial ou outro procedimento previsto em lei” (ex.: art. 69 da Lei n. 9.099/95, TCO). Destarte, dentro do contexto policial, representações judiciais de medidas cautelares (ou outras providências investigativas) aptas a restringirem direitos individuais em busca da elucidação de fato criminoso não militar, revela verdadeira aberração jurídica quando não subscritas (ou dirigidas) pelo Delegado de Polícia. Tem-se um ato arbitrário, utilitarista e sem fundamento democrático denotando grave afronta a direitos fundamentais em eventual acolhida pelo Poder Judiciário.

Por melhor que seja a intenção, não é cabível qualquer espécie de confusão em relação às atribuições e competências constitucionais, sem antes haver o desmoronamento de todo sistema. Medidas restritivas de liberdades jamais podem ser interpretadas extensivamente. O atual modelo constitucional não permite sequer imaginar inicial acusatória subscrita pelo Poder Judiciário ou sentença assinada por promotor de justiça, nem qualquer outra espécie de desvio de função.

Outrossim, oportuno destacar que, por atuar diretamente com as liberdades fundamentais e possuir a função de auxiliar a jurisdição, a polícia encarregada de realizar investigação criminal deveria ser dotada das mesmas garantias e independências, frente ao Executivo, que possuem o Judiciário (GAVIORNO, 2006).

No âmbito policial o Delegado de Polícia exerce com exclusividade carreira jurídica de Estado. Nessa direção seguiu o STF (ADI´s n. 3441 e 2427) e o art. 2º da Lei n. 12.830/13. Ademais, de acordo com os tribunais superiores, as atribuições exercidas por outras forças policiais não possuem natureza de carreira jurídica de Estado (STF, RE 401243; STF, RMS 26.546). “A garantia de ser investigado apenas pelo delegado natural revela-se verdadeiro direito fundamental do cidadão” (CASTRO; COSTA, 2016).


REFERÊNCIAS

CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro. COSTA, Adriano Sousa. Lei 13.245/16 e a participação do advogado no inquérito policial. Disponível aqui.

GAVIORNO, Gracimere Vieira Soeiro de Castro. Garantias constitucionais do indiciado no inquérito policial: controvérsias históricas e contemporâneas. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Direitos e Garantias Constitucionais) – Faculdades Integradas de Vitória, Vitória, 2006.

LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2015.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

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Eujecio Coutrim Lima Filho

Delegado de Polícia Civil (MG) e Professor

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