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A agregação de fundamento inédito para improver apelo defensivo

A agregação de fundamento inédito para improver apelo defensivo

Inicio estas linhas pedindo escusas aos leitores por trazer ao debate, com alguma frequência, assunto surgido no desempenho diário da Advocacia Criminal, no que vou aqui reiterar. É o sentimento de quem sofre na carne as agruras de defender em uma época de furor punitivista e, especialmente, de total desapreço pelas garantias e regras que emanam da Constituição Federal e da legislação ordinária.

Ao assunto: uma cidadã, após denunciada e o transcurso do processo criminal, restou condenada, como incursa no art. 33, caput, da Lei n.º 11.343/06, a uma pena de 05 anos e 06 meses de reclusão, em regime fechado, fato cometido em junho de 2009.

Ocorre que, para a fixação do regime fechado para o início do cumprimento da pena privativa de liberdade, em sentença proferida em 2013, o magistrado a quo utilizou um único fundamento: o tráfico ilícito de drogas é crime equiparado a hediondo. E nada mais disse o Juízo sobre a imposição do regime fechado. Só isso.

O Ministério Público apelou da sentença, tendo por objeto a absolvição da acusação de associação para o tráfico de drogas. Já a defesa da cidadã, por igual, também manejou recurso de apelação, sendo que um dos objetos do apelo era a fixação do regime fechado para a execução penal.

Apreciando os recursos de apelação, o Tribunal de Justiça os improveu. No entanto, no que diz com o apelo defensivo, no ponto em que discutia a estipulação do regime fechado, a Superior Instância fez o que não poderia, ou seja, agravou a situação jurídica da cidadã, agregando fundamentação inédita, com isso, incorrendo em indevida supressão de instância.

O Tribunal desacolheu o pleito defensivo (repita-se: apenas a apelação da defesa tinha por objeto o regime de cumprimento da pena), dizendo que o regime fechado era o cabível por conta de a condenada possuir anteriores condenações criminais, ainda pendentes de cumprimento, e dado o volume de entorpecente de alto poder viciante.

Em outras palavras, a Instância Superior buscou, por assim dizer, “salvar” a imposição de regime fechado determinada na sentença de primeiro grau.

É que, como já visto, o julgador monocrático fundamentou a fixação do regime fechado exclusivamente com base na equiparação do tráfico ilícito de drogas aos crimes hediondos, buscando, com isso, atrair a incidência do disposto no art. 2.º, § 1.º, da Lei n.º 8.072/90, com redação determinada pela Lei n.º 11.464/07 (A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado).

Ocorre que, em julgamento realizado em 27.06.2012, o Supremo Tribunal Federal declarou, incidentalmente, a inconstitucionalidade do § 1.º do art. 2.º da Lei n.º 8.072/90, com a redação que lhe deu a Lei n.º 11.464/07 (STF, Tribunal Pleno, HC n.º 11.340/ES, Rel. Min. Dias Toffoli).

O Pretório Excelso considerou, para declarar a incompatibilidade desse dispositivo com a Carta Magna, que ele afrontaria o princípio constitucional da individualização da pena, ressalvando a possibilidade, mesmo que em condenações por tráfico ilícito de drogas, de imposição de regime outro que não o fechado.

Em resumo, condenado o réu, a fixação do quantum de pena e a imposição do regime de cumprimento devem ser individualizados, com observância dos preceitos dos arts. 33, § 3.º, e 59 do Código Penal.


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  • Os antecedentes do réu em Plenário do Júri (aqui)

Observe-se que a sentença monocrática foi prolatada em 04.07.2013, já após o julgamento do HC n.º 111.840/ES, pelo Supremo Tribunal Federal, ocorrido em 27.06.2012, e o delito cometido durante a vigência da Lei n.º 11.464/07, sendo que cumpria ao Julgador de piso ter observado a decisão do Pretório Excelso quanto à inconstitucionalidade do § 1.º do art. 2.º da Lei n.º 8.072/90, com a redação determinada pela Lei n.º 11.464/07.

Se desejasse, Sua Excelência, impor o regime fechado, deveria ter lançado mão de fundamentação idônea e, principalmente, constitucionalmente válida, conforme entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça:

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUSTRÁFICO DE DROGAS. PENA INFERIOR A 08 (OITO) ANOS DE RECLUSÃO. REGIME FECHADO FIXADO COM BASE NA HEDIONDEZ E NA GRAVIDADE ABSTRATA DO DELITO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. AGRAVO DESPROVIDO. (…) II – No que tange ao regime inicial de cumprimento de pena, cumpre registrar que o Plenário do col. Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional o art. 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/90 – com redação dada pela Lei n. 11.464/07, não sendo mais possível, portanto, a fixação de regime prisional inicialmente fechado com base no mencionado dispositivo. III – No presente julgado, constata-se que a pena-base foi fixada no mínimo legal, pois consideradas favoráveis as circunstâncias judiciais e além disso, os pacientes são primários, bem como a pena não excede o patamar de oito anos. Destarte, o acórdão impugnado não apresentou nenhum fundamento concreto para o agravamento do regime, a não ser a hediondez e a gravidade abstrata do delito, razão pela qual, conclui-se que os pacientes fazem jus ao regime semiaberto, para início de cumprimento de pena, ex vi do art. 33, § 2º, “b”, e § 3º, do CP. Agravo regimental desprovido. (STJ, 5.ª Turma, AgRg no HC 459051/SP, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 18.09.2018 (grifou-se)

Outrossim, inclusive, o próprio entendimento consolidado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que a imposição de regime mais severo do que aquele que seria compatível com a quantidade de pena, exige fundamentação idônea (Súmula 719 do STF: A imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea).

Portanto, tendo em vista a insubsistência jurídica da imposição de regime fechado pela sentença, à conta da única fundamentação por ela utilizada, o Tribunal de Justiça realizou verdadeira e indevida manobra de “salvamento”, trazendo à baila argumentos inéditos para justificar a fixação do regime fechado.

Ora, ao fundamentar a imposição do regime fechado por conta de a cidadã ter sofrido anteriores condenações penais e em razão do suposto alto volume de entorpecente, a Superior Instância incorreu, pela via reflexa, na vedação exposta no brocardo non reformatio in pejus. Ainda que a decisão não tenha sido propriamente reformada, foi ela encorpada com fundamentação até então inédita, para fins de sustentar a fixação do regime inicial fechado.

É que, não tendo esses argumentos sido utilizados na sentença monocrática, o Tribunal de Justiça acabou por suprimir uma instância, subtraindo à condenada a possibilidade dela debater e refutar tal argumentação. Sabido que os recursos especial e extraordinário não se prestam para a discussão de matéria fática.

Mas o que é pior, é que a situação jurídica da cidadã foi agravada no âmbito do julgamento de um recurso de apelação manejado pela sua defesa. Com efeito, a defesa batia-se contra o regime fechado imposto exclusivamente com base na equiparação do tráfico de drogas aos delitos hediondos (o que, por consequência, atrairia o disposto no art. 2.º, § 1.º, da Lei n.º 8.072/90, com redação pela Lei n.º 11.46/07), e a Superior Instância, reconhecendo, implicitamente, a injuridicidade do único argumento da sentença de primeiro grau para esse ponto, agregou fundamentação inédita.

Quer dizer, julgamento do apelo defensivo acabou por agravar o status jurídico da cidadã, a qual, agora, tem contra si imposto o regime fechado, com base em fundamentação contra a qual não teve oportunidade de debater e controverter.


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A rigor, diante da situação exposta, cumpria à Superior Instância, reconhecendo não subsistir a fixação do regime fechado unicamente com apoio em dispositivo legal declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, decidir que a estipulação do regime para o cumprimento da pena privativa de liberdade imposta à cidadã deveria observar a regra geral constante do Código Penal, art. 33, § 2.º, alínea c, isto é, o regime semiaberto.

Em verdade, para evitar-se essa situação, cumpria, primeiramente, ao julgador monocrático utilizar-se de fundamentação juridicamente válida à luz da Constituição Federal, e, ao Tribunal de Justiça, ter observado o princípio non reformatio in pejus.

Como sempre, é apenas e tão-somente o bom e velho cumprimento das regras. Como dizia o lendário General Honório Lemes:

Quero leis que governem homens, e não homens que governem leis.


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Rodrigo de Oliveira Vieira

Advogado criminalista. Ex-Promotor de Justiça.

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