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O contraditório e a ampla defesa na Lei 13.245/2016


Por Ruchester Marreiros Barbosa


A Lei 13.245/2016, que altera o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, traz como conteúdo epistêmico o direito de acesso aos autos da investigação criminal por uma defesa técnica e proteção efetiva ao princípio já consagrado em nossa Carta Política em seu art. 5º, LVII, qual seja o nemu tenetur se detegere ou princípio da não auto incriminação.

Nós já havíamos defendido que a súmula vinculante 14 do STF já trazia a necessidade de se garantir a defesa na investigação criminal e que esta garantia deve ser efetivada pelo Delegado de Polícia como consequência da incidência das garantias constitucionais e de convencionalidade dos tratados e convenções de Direitos Humanos, conforme deixamos bem claro em artigo publicado em outra oportunidade.

Em outra oportunidade anterior ao artigo, publicamos na Revista Síntese de Direito Penal e Processual penal (v.13, nº 74, jun./jul. 2012, p. 21), na qual já havíamos acenado para o cenário dos Tribunais Superiores de que a jurisprudência navegava, desde 2009, por entendimento consolidado de que o acesso aos autos da investigação criminal é uma garantia do imputado:

“Verifica-se, assim, que o STF, nos mesmos moldes que o STJ, vem preconizando entendimento que o advogado tem acesso aos elementos investigativos, desde que munido de instrumento de mandato e em nome do imputado (investigado indiciado ou não), como forma de conciliar o sigilo da investigação com o direito consagrado na constituição pelo art. 5º, LXIII e LXIV, da CRFB”

Esta atenção foi repetida em palestra por nós proferida no I Encontro Nacional de Delegados de Polícia sobre Aperfeiçoamento da Democracia e Direitos Humanos em Foz do Iguaçu em 29 de novembro de 2014, nas quais tivemos a oportunidade de construir um enunciado 22, que assim dispunha:

A súmula vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal institui a defesa na investigação criminal, cuja efetividade implica em intimar o imputado a se pronunciar sobre os elementos informativos antes do relatório final ou decisão de indiciamento, ressalvados os casos de urgência ou de perigo concreto à eficácia da investigação.”

Em verdade, lamentamos que este esforço em consolidar maior efetividade, na investigação criminal, de garantias fundamentais, que muitas das vezes norteiam o processo penal na fase instrutória é, mesmo a pós 28 anos de Constituição, súmula vinculante 14 e lei 13.245/16, ainda, nos depararmos com a mentalidade retrospectiva, e de reprodução autoritária, por parte de alguns membros da seara jurídica, em negar incidência destes princípios na fase investigativa sob alegação de que a investigação criminal se transformaria em processo, e por esta razão, não seria possível categorias processuais neste momento, sob pena do juiz considerar a prova colida como fonte de convicção para fundamentar decretos condenatórios.

Ledo engano. É a interpretação meramente formal e restritiva do que preconiza o art. 5º, LV a despeito dos “acusados em geral” que é realizada pela doutrina tradicional deve parar de se repetir como um mantra ou um dogma, haja vista que já foi superada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Acusado em geral não é aquele denunciado formalmente pelo órgão de acusação. Caso contrário, deveríamos suprimir as garantias individuais nos processos administrativos disciplinares, na primeira fase, ou sindicâncias administrativas, pois nestes não há “litigantes em processo judicial ou administrativo”. Há processo administrativo, mas não há litigantes propriamente ditos, e mesmo assim se admite defesa como construção doutrinária e jurisprudencial, porque neles há uma imputação de infração administrativa.

O mesmo ocorre na investigação criminal quando há um suspeito. Há uma imputação penal, que mesmo em fase embrionária, caminha para eventual medida cautelar em seu desfavor. Tanto que se considera um constrangimento ao status dgnitatis que basta figurar como um imputado para que enseje situação jurídica de potencial atingimento do direito de ir e vir, a se permitir sua impugnação por meio de habeas corpus. Então, como não há uma indicação pela prática de um crime.

A distinção está somente no modelo do procedimento adotado e a formalização de seu início (portaria/denúnia/queixa), mas em ambas as fases (investigativa e instrumental) se pratica atos concretos de controle social de viés punitivista, com vistas a potencialmente constranger a liberdade irrenunciável de alguém. Não deixemos de lembrar, que até mesmo na fase instrumental a condenação é um resultado potencial.

A existência de indiciamento ou arquivamento, liberdade e medida cautelar, condenação e absolvição, em verdade somente reproduz facetas tridimensionais do poder punitivo, ensejando, em cada uma delas, a possibilidade de impugnações pelo fundamento do “constrangimento ilegal”. Acaso a impugnação não seja acolhida, em outras palavras, o que informa a decisão é que o constrangimento é legal e deverá o investigado/suspeito/réu suportar este ônus até que aduza pretensão defensiva na qual busque libertar-se da espada de Dâmocles.

Isto significa dizer que não há dúvidas que a imputação penal desde a fase da investigação criminal autoriza o exercício imediato da defesa, ainda que não haja uma dedução formal e delineada de uma pretensão que deva ser decidida de forma definitiva pelo judiciário, mas já há uma dedução factível a ensejar uma ou várias hipóteses criminais, pelos quais o investigado deverá resistir.

Não haverá o contraditório nos moldes tradicionais, como ocorreria na “fase da instrução”, segundo os quais a pessoa (réu) participaria de todos os atos, ou seja, de todas as oitivas, por exemplo. A investigação, ainda que possa (e deve) ter um cariz democrático, nos parece que a redação do novo inciso XXI do art. 7º da lei 8906/94 ao dispor que o advogado terá direito a

“assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração”

Ao ser interpretado isoladamente, até quis determinar que o investigado com advogado constituído seja intimado para participar da oitiva das testemunhas, haja vista que fez distinção de “interrogatório” (investigado) e “depoimento” (testemunhas), bem como garantiu assistência dos seus clientes investigados (e não clientes testemunhas) empregou a expressão “durante a apuração de infrações”, sob pena de nulidade.

No entanto, como é facilmente dedutível das razões acima, se por um lado haveria o direito de acompanhar a oitiva de uma testemunha, prova esta, que ainda seria realizada, por outro temos o §11 do mesmo artigo 7º, donde se deduz que o advogado teria acesso àquelas provas já documentadas, ou seja, a posteriori e não concomitantemente, seguindo orientação já aduzida pela súmula vinculante nº 14 do STF, como podemos verificar na redação do dispositivo in verbis:

“a autoridade competente poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências.”

Neste momento vem a pergunta: como conciliar o art. 7º, XXI e seu §11º? A nosso ver a resposta está na parte final do próprio §11º, quando ressalva pela restrição de acesso às diligências em andamento, ou seja, aquelas que o advogado poderia acompanhar concomitante ao momento de sua produção pelo Estado-investigação.

Parece que o sistema, não obstante, muito mal escrito, uma verdadeira colcha de retalhos sistêmico, nos fornece como parâmetros a distinção entre provas já documentadas e aquelas ainda a serem produzidas.

Às já existentes e juntada aos autos o acesso não pode ser limitado à defesa, quanto àquelas em andamento ou de acompanhamento simultâneo ficará a cargo do Delegado de Polícia decidir se a produção da prova acompanhada concomitantemente pelo advogado, como uma oitiva de testemunhas, irá comprometer a eficiência do resultado da delimitação da responsabilização criminal, seja para afirmar sua existência ou para negá-la.

_Colunistas-Ruchester

Ruchester Barbosa

Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. Delegado.

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