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Sim, é sempre necessário defender o óbvio

Que tempos são esses em que temos que defender o óbvio?”, já dizia o dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht. Frase atemporal diante do caos exposto, no qual as desigualdades e mazelas sociais acentuam-se com a pandemia do COVID-19.

O monitoramento de dados elaborado semanalmente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem demonstrado o aumento exponencial de casos de COVID-19 no sistema prisional, sem serem tomadas todas as medidas adequadas cabíveis.

Recentemente no Supremo Tribunal Federal, entendeu-se no HC nº 193636 que doenças graves não são suficientes para concessão da prisão domiciliar, expondo:

’AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. EXECUÇÃO. PENA SUPERIOR A TRINTA E QUATRO ANOS DE RECLUSÃO. PEDIDO DE PRISÃO DOMICILIAR. COVID-19. PACIENTE COM DOENÇA GRAVE. MONITORAMENTO INDIVIDUALIZADO. INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DA DECISÃO AGRAVADA: INVIABILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL NÃO CONHECIDO. DETERMINAÇÃO PARA QUE O JUÍZO DA EXECUÇÃO REAVALIE A SITUAÇÃO DO PACIENTE. (HC 193636 AgR, Órgão julgador: Segunda Turma, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Julgamento: 07/12/2020, Publicação: 08/01/2021)’.

O entendimento é contra a disposição expressa do artigo 318 do Código de Processo Penal:

’Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: I – maior de 80 (oitenta) anos; II – extremamente debilitado por motivo de doença grave, III – imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência, IV – gestante, V – mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos, VI – homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos’’.

Nesse sentido, expõe ROIG (2018, p. 185):

Não parece razoável a exigência de que o réu esteja extremamente debilitado, porquanto a situação de encarceramento é, por si só, fator de agravamento das condições de saúde das pessoas presas que possuem doença grave. A prisão nunca foi e jamais será terapêutica. Manter a prisão diante da doença grave já é um atentado à humanidade, esteja ou não extremamente debilitado o acusado.

Isso pois não é possível saber os sintomas e efeitos do coronavírus em cada pessoa, pois cada organismo reage de uma forma. Para alguns considerados assintomáticos, apenas sintomas leves são detectados; para outros ocasiona o óbito, falta de ar e inúmeros efeitos colaterais.

Ademais, as condições do sistema carcerário não possibilitam tratamento adequado a apenados com câncer, em tratamento de quimioterapia ou doenças graves, pelas condições insalubres da maioria dos estabelecimentos prisionais.

A Recomendação nº 62 do Conselho Nacional de Justiça, expõe inicialmente em seus termos:

(…) CONSIDERANDO que o grupo de risco para infecção pelo novo coronavírus – Covid-19 compreende pessoas idosas, gestantes e pessoas com doenças crônicas, imunossupressoras, respiratórias e outras comorbidades preexistentes que possam conduzir a um agravamento do estado geral de saúde a partir do contágio, com especial atenção para diabetes, tuberculose, doenças renais, HIV e coinfecções;

CONSIDERANDO que a manutenção da saúde das pessoas privadas de liberdade é essencial à garantia da saúde coletiva e que um cenário de contaminação em grande escala nos sistemas prisional e socioeducativo produz impactos significativos para a segurança e a saúde pública de toda a população, extrapolando os limites internos dos estabelecimentos’.

Posteriormente, o atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Fux, alterou o alcance da Recomendação nº 62 do Conselho Nacional de Justiça, e mudou monocraticamente a interpretação da referida recomendação, sendo editada a nova nº 78/2020, aduzindo no artigo 5-A que

As medidas previstas nos artigos 4º e 5º não se aplicam às pessoas condenadas por crimes previstos na Lei nº 12.850/2013 (organização criminosa), na Lei nº 9.613/1998 (lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores), contra a administração pública (corrupção, concussão, prevaricação etc.), por crimes hediondos ou por crimes de violência doméstica contra a mulher.

Entendimento preocupante, tendo em vista o recrudescimento da lei de execução penal com a lei nº 13.964/2019, no qual incluiu no rol de delitos hediondos crimes patrimoniais e inclusive furto, quando praticado com o uso de explosivos ou artefatos análogos.

O argumento de que a referida recomendação ensejaria a soltura indiscriminada de presos é uma falácia, com base nos dados do Conselho Nacional de Justiça, apenas 4% da população carcerária fora beneficiada com prisões domiciliares ou antecipações nas progressões de regime. Inobstante tais dados, reiterados são os recursos ministeriais interpostos, que acabam revendo as decisões de primeiro grau nos tribunais.

Fato é, em um ano de pandemia global, todos os indivíduos sentem os impactos do vírus, sendo totalmente incoerente a alteração de entendimento no momento de calamidade pública atual. Seria como prever quais indivíduos seriam ou não atingidos pelo vírus.

Segundo os dados oficiais do Ministério da Saúde, atualizados até 10.02.2021, o Brasil já possui 234.850 mil óbitos, nessa semana com 1.330 novos casos e letalidade de 2, 4%. É um quadro em demasia preocupante, pois no sistema prisional a higiene e ventilação já são precárias, e ainda, há o problema da superlotação, sendo um local de extrema facilidade para a disseminação do vírus.

Seguir a recomendação nº 62 do CNJ seria imprescindível nesse momento, mas diante da mudança de entendimento e alcance, mais um óbice é colocado para tutelar a vida dos indivíduos privados de liberdade, tendo em vista que a Recomendação está em consonância com todos os tratados internacionais de Direitos Humanos nos quais o Brasil é signatário, e estão sendo descumpridos. Ressalta RIVERA (2019, p. 78): nesse sentido:

No âmbito da América Latina, deve-se destacar a tarefa desenvolvida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos(CIDH), em especial sua relatoria para pessoas privadas de liberdade, na elaboração de numerosos relatórios com recomendações aos Estados parte. Em especial, a CIDH em seu relatório de 2011 sobre os direitos humanos das pessoas privados de liberdade nas Américas, referiu haver constatado que a tortura a pessoas sob custódia do Estado segue sendo um dos principais problemas de direitos humanos na região.

O momento é de extrema cautela observado a rápida disseminação do COVID 19 em locais insalubres como o sistema prisional brasileiro. Ressaltam assim: PAVARINI e GIAMBERARDINO (2018, p. 110):

‘’O cárcere, como segmento terminal e essencial do processo seletivo de produção e reprodução das distâncias sociais levadas adiante pelo sistema penal, cumpre sua função de abarcar a marginalidade econômica, social e cultural’’.

De fato a alteração de entendimento pode acarretar mais óbitos no sistema prisional, reconhecidamente ineficaz pelo Supremo Tribunal Federal, conforme o julgamento da ADPF 347. Portanto, sim, é sempre necessário defender o óbvio e fazer valer o disposto na Constituição Federal.


REFERÊNCIAS

BEIRAS, Iñaki Rivera, Desencarceramento: por uma política de redução da prisão apartir de um garantismo radical, tradução Bruno Rotta Almeida,Maria Palma Wolff, 1ª edição, Florianópolis, Santa Catarina: Tirant Lo Blanch, 2019.

PAVARINI, Massimo, GIAMBERARDINO, André, Curso de penologia e execução penal, 1ª edição,  Florianópolis, Santa Catarina, Tirant lo Blanch, 2018.

ROIG, Rodrigo Duque Estrada, Execução penal: teoria crítica, 4ª edição, São Paulo : Saraiva Educação, 2018.


Leia mais:

STF: dosimetria da pena não pode ser objeto de análise em HC


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Paula Yurie Abiko

Pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal - ABDCONST. Pós-Graduanda em Direito Digital (CERS). Graduada em Direito - Centro Universitário Franciscano do Paraná (FAE).

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